Semanas depois que outros países latino-americanos começaram a vacinar seus cidadãos contra o coronavírus, o Brasil finalmente administrou sua primeira injeção em 17 de janeiro, usando a fórmula chinesa Sinovac Biotech.
Com eficácia de pouco mais de 50% - pouco acima do limite do Brasil para aprovação regulatória - a injeção chinesa não foi a primeira escolha do governo. Mas, por enquanto, há pouco mais disponível.
A principal estratégia do país - fabricar 100 milhões de doses da vacina AstraZeneca PLC localmente - tem sido afetada por atrasos repetidos. Esse esforço não deve render um produto acabado até março, no mínimo. A AstraZeneca na semana passada enviou 2 milhões de doses de emergência para ajudar o Brasil a começar. Enquanto isso, o Ministério da Saúde ainda não assinou acordos com outros fabricantes de vacinas.
Os atrasos deixam os 210 milhões de residentes do Brasil vulneráveis a um dos piores surtos de coronavírus do planeta. O Brasil registrou mais de 218.000 mortes por covid-19, perdendo apenas para os Estados Unidos, e vacinou menos de 0,5% de sua população.
O lançamento da vacina no Brasil é apenas o último passo em falso do Ministério da Saúde, que o presidente Jair Bolsonaro abasteceu com militares da ativa e aposentados com pouca experiência em saúde pública. Esses recém-chegados não conseguiram entender a rapidez com que precisavam garantir o abastecimento em meio à acirrada competição global e a importância de se proteger fazendo acordos com vários fabricantes, de acordo com entrevistas com mais de uma dezena de funcionários atuais e ex-funcionários, executivos farmacêuticos, diplomatas e especialistas em saúde pública.
A hesitação do ministério levou a uma oportunidade perdida em agosto de solicitar 70 milhões de doses de uma vacina feita pela Pfizer Inc e BioNTech SE, com entrega a partir de dezembro, disse a Pfizer em um comunicado de 7 de janeiro.
A agência Reuters teve acesso a conversas de Whatsapp de representantes do Ministério da Saúde, contendo milhares de mensagens trocadas entre autoridades do alto escalão no ano passado, enquanto a corrida global por vacinas estava esquentando. As mensagens revelam que a nova equipe de liderança priorizou a hidroxicloroquina e sua prima cloroquina, drogas antimaláricas defendidas por Bolsonaro como tratamentos covid-19, apesar de poucas evidências científicas de que funcionassem.
“Não havia foco suficiente nas vacinas e havia falta de visão técnica”, disse o ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, à Reuters. Teich renunciou em maio em um desentendimento com Bolsonaro sobre a estratégia da hidroxicloroquina.
A Reuters enviou uma lista detalhada de perguntas para esta matéria ao gabinete do presidente, que encaminhou as perguntas ao Ministério da Saúde. O ministério não respondeu.
Bolsonaro - que contraiu o coronavírus no ano passado e diz que não vai tomar nenhuma vacina covid-19 - defendeu o lançamento da vacina de seu governo. “Com todo o respeito, ninguém faria melhor do que o meu governo está fazendo”, disse ele em uma entrevista para a televisão em 15 de janeiro.
Embora muitas nações tenham lutado para obter vacinas enquanto os fabricantes se esforçam para atender à demanda global, o Brasil estava melhor posicionado do que muitos. O país tem uma longa história de iniciativas de vacinação bem-sucedidas e suas instalações de produção financiadas pelo estado podem produzir vacinas em grande escala.
O governo federal desperdiçou essas vantagens, disse Marcia Castro, brasileira e professora da Escola de Saúde Pública Harvard TH Chan em Boston.
“É uma sucessão de erros que começou desde o início da pandemia”, disse ela. “E, infelizmente, estamos medindo esses erros pelo número de mortes.”
OBSESSÃO HIDROXICLOROQUINA
A injeção AstraZeneca deveria ser o principal pilar do plano de tratamento do Brasil. De acordo com uma pessoa envolvida no negócio, a empresa sediada em Cambridge, na Inglaterra, começou a conversar com o Ministério da Saúde sobre a compra de sua vacina no início de junho.
A essa altura, Teich, o ex-ministro da Saúde, havia partido, substituído por Eduardo Pazuello, um general do Exército sem formação médica. Ele rapidamente se cercou de outros militares.
As negociações com um ministério em convulsão foram desafiadoras, disse a pessoa a par das negociações.
“Não houve decisões tomadas de cima”, disse a pessoa, referindo-se ao Bolsonaro e à nova liderança do ministério.
As novas autoridades apostavam na hidroxicloroquina para mitigar a pandemia no Brasil, revelaram meses de bate-papos no WhatsApp aos quais a Reuters teve acesso. As vacinas foram mencionadas com pouca frequência e, às vezes, com ceticismo.
Por exemplo, em 12 de junho, poucos dias após ser nomeado vice-ministro da Saúde, Elcio Franco, coronel aposentado do Exército, alertou os colegas para um artigo de revista apresentando o alto executivo brasileiro da AstraZeneca discutindo a vacina da empresa. Franco expressou surpresa que alguém pudesse se voluntariar para participar de um ensaio de vacina.
"Quem seria uma cobaia?" Franco escreveu a seus colegas.
Franco, no entanto, expressou confiança na hidroxicloroquina e na cloroquina.
Em junho, as mortes por covid-19 por dia estavam atingindo novas máximas no Brasil, mostraram dados oficiais. Franco afirmou que o oposto era verdadeiro: “As taxas de mortalidade estão caindo drasticamente devido ao protocolo de tratamento de Bolsonaro”, ele postou no grupo interno do WhatsApp em 15 de junho. “A cloroquina está revertendo a situação”.
Franco não respondeu aos pedidos de comentários feitos pela reportagem através de sua conta no LinkedIn.
O Brasil agora está lidando com outro surto de infecções que está levando hospitais à beira do colapso em várias cidades.
O Ministério da Saúde dobrou o número de antimaláricos. A organização exortou publicamente as pessoas infectadas a tomá-los logo após o início dos sintomas e, neste mês, enviou 120.000 comprimidos de hidroxicloroquina para o estado do Amazonas, que foi bastante atingido.
ASTRAZENECA
Uma fonte envolvida nas negociações da AstraZeneca disse que a liderança do Ministério da Saúde não pareceu compreender a rapidez com que precisariam agir para garantir uma parte do fornecimento limitado da empresa.
Em uma reunião inicial por volta do início de junho, Pazuello, o novo cacique, mostrou interesse em comprar a vacina “e depois se levantou e saiu da sala”, disse a pessoa. “Ele não veio para chamadas futuras.”
Pazuello não respondeu aos pedidos de comentários feitos pela reportagem.
Durante as negociações do ministério, funcionários da AstraZeneca enfatizaram a necessidade de o Brasil assumir um compromisso financeiro para garantir a entrega, disse a fonte.
Os recém-chegados ao ministério ainda estavam controlando a burocracia do governo, retardando a transação, disseram três pessoas familiarizadas com a situação. As autoridades também procederam com cautela para evitar qualquer percepção de que lucrariam com uma vacina não comprovada.
“Eles temem que as pessoas presumam que houve propina envolvida e que seus oponentes usem isso como um motivo para iniciar uma investigação”, disse a fonte.
Enquanto isso, a Grã-Bretanha, a União Europeia e os Estados Unidos assinaram grandes acordos com a AstraZeneca.
Com a hesitação do Ministério da Saúde do Brasil, a AstraZeneca procurou funcionários em outras partes do governo para ajudar a desbloquear o financiamento, disse a pessoa envolvida nas negociações.
A AstraZeneca não respondeu aos pedidos de respostas feitos pela reportagem.
Em 27 de junho, o Brasil anunciou que assinou um acordo de US$ 127 milhões para começar a produzir a vacina da AstraZeneca no Instituto Fiocruz do Rio de Janeiro, financiado pelo governo federal. Franco, o vice-ministro da saúde, disse no final de junho que o Brasil produziria inicialmente cerca de 30 milhões de doses da vacina, metade em dezembro de 2020, o restante em janeiro de 2021.
Mas a Fiocruz ainda não fabricou uma dose única porque não tem o princípio ativo necessário para fazer a vacina. O primeiro embarque desse material chinês está atrasado para cerca de 8 de fevereiro, disse a Fiocruz esta semana, sem dar justificativa. A Fiocruz previa anteriormente que produziria doses prontas até março. A previsão será atualizada assim que o ingrediente chegar, disse o comunicado.
Yang Wanming, o embaixador da China no Brasil, disse em uma entrevista coletiva na terça-feira que obstáculos "técnicos" estavam impedindo o embarque. Ele não deu mais detalhes.
Com o cronograma atrasando, o Ministério da Saúde no final de dezembro apelou à AstraZeneca, que conseguiu obter 2 milhões de vacinas prontas para uso da Índia. Essas doses, que chegaram ao Brasil em 22 de janeiro, vão imunizar apenas 0,5% da população brasileira.
FALHA DE PFIZER
Enquanto isso, as negociações com a Pfizer tornaram-se difíceis. O Ministério da Saúde repreendeu publicamente a empresa por exigir que o Brasil assinasse um termo de isenção de qualquer responsabilidade em relação à vacina.
A Pfizer diz que muitos países assinaram a renúncia; ele culpa o governo brasileiro por arrastar os pés. Em um comunicado de janeiro, a empresa disse que iniciou negociações em junho com o Ministério da Saúde, que disse ter repassado a oferta da Pfizer de 15 de agosto para fornecer 70 milhões de doses.
Com as negociações emperradas, o governo brasileiro voltou-se para a tentativa de Sinovac.
Bolsonaro, um crítico vocal da China, havia jurado nunca comprar a vacina chinesa. Em 13 de janeiro, ele teve o prazer de apontar aos apoiadores que os testes brasileiros da vacina, conduzidos no Instituto Butantan de São Paulo, mostraram uma decepcionante taxa de eficácia de 50,4%.
Mas, com poucas opções restantes, o Ministério da Saúde anunciou recentemente um acordo para a compra de até 100 milhões de doses do Butantan.
Em 18 de janeiro, Bolsonaro adotou um tom mais conciliador. (com agência Reuters)